Esse é o mesmo Jorge que há tempo se esconde no canto escorregadio da cama. Passou mais tempo que devia sem saber onde estava, ao acordar. Sente a face impregnada com o suor que jorra do rasgão do descobrir de repente quem se aprendeu a ser. E ele tenta esquecer. Tenta não saber, mas sabe que essas serão as únicas oportunidades de sentir tal coisa, um sentimento que só se torna nobre, pois nos leva ao extremo da demência. Mas quem pode dizer que sabe quem É?
Ele um dia terá coragem... Coragem de ser covarde a ponto de afirmar “Eu não sei quem me diz”. Coragem de ter medo de ser essa mesma coisa. E essa manhã estava particularmente escura. Ao virar o rosto pesado, vê uma migalha de luz refletir o quarto de forma oval na face do copo. Por um momento, pensou se não poderia ser ele o reflexo. Ou o copo junto com o quarto e todo o resto não seriam um puro reflexo do reflexo. Nunca havia se atentado ao fato de que podia pensar tais coisas, Sempre era ela quem sussurrava em seu ouvido “você é isso... você é aquilo...”, mas como ela pode dizer isso. De onde vem esse É?
E ele lá permanece como bicho acuado no canto da cama, se escondendo do reflexo na face do copo, bebendo como cão com sede todo o desespero de se deparar com o rosto que se esconde atrás do espelho. E ri... Ri com o amarelo anêmico da estadia encarcerada em um corpo que ele começa a achar não ser seu, lhe manchando os dentes. Aquela manhã começava como um suspiro de soco na barriga. Ao invés de sentir a usual apatia de se lembrar quem é, minutos após acordar, sentia um frio na barriga, frio de garoto virgem. Dessa vez ele lembrava, mas não tinha certeza se tal recordação tinha fundamento. E se ele acordasse e de repente se lembrasse de ser Helena?
Sempre gostei daqueles minutos logo após se acordar quando não sabemos ao certo quem somos... É certo que isso nem sempre acontecesse, ou talvez nem sempre saibamos que esquecemos de ser, mas, quando isso ocorre, gozamos o prazer de não-estarmos. Ser Deus deve ser assim, meio covarde, meio esperto, meio demente, mas, acima de tudo, ausente. Porém, hoje o não-dia não foi tão divino, o estômago dava nós em circunvoluções cheias saliva guardada no canto do órgão. A saliva quase seca dos dias em permanência recíproca com o mundo. POR QUE é tudo tão assim? E o copo do lado da cama me enojando, aquele face escondida na face do copo poderia não me-ser. Mas eu viro pro lado, viro sim, porém o reflexo não depende de mim... Se não for eu vai ser o quarto, o quarto que eu sou. ELE não pode... Eu não posso. Até que ponto chegou tal passividade agônica e corrosiva. Afundou-me no meu próprio flutuar, me acorrentou na infinidade de possibilidades. Eu nem mais sei se devo saber.
Eu preciso levantar... Eu preciso ir até a janela, preciso vomitar em cima do mundo. “Toma para vocês um filho seu que foge a luta. Toma o resto dos olhares. Toma para vocês o corpo que se arremata em leilão próprio. Toma o que consome os restos de luz filtrados pela face translúcida de um copo sujo”. Mas o que me espera do lado de lá da transparência que me encarcera me cegando? Talvez Jorge, o próprio. Substantivo que adjetiva um corpo se convencendo a todo tempo que estar de pé é o melhor a se fazer. Tenho medo de não precisar temer o curso não-linear e vibrátil da vida. SOU UM ARCABOUÇO. Preciso sê-lo para ser um que vive, ser um que se vira e não vê a modificação tão simples e assustadora da realidade que passa pelo funil de um copo. MAS EU NÂO caibo em mim, não posso mais me suportar, não devo querer isso. Por hoje pelo menos, para que não precise mais poder.
Jorge se levanta e de súbito arremessa o copo contra a parede. No momento exato em que o copo se transforma em pedaços, tudo Para. Os ponteiros do relógio na parede ficam estáticos; os barulhos vindos da rua cessam; o vento que entrava pelo vitral do quarto e lhe balançava a franja sobre a testa para, deixando pequenos fios de cabelos numa marca que lembra um flutuar; os cacos ficam suspensos e em cada pedaço há um pedaço da face de Jorge. ELE não respira. Nesse momento, a parede sangra e parece chorar como um corpo que nasce.
E tão rápido como fora o arremesso, as coisas retomam o seu movimento. Porém, ao cair no chão cada caco dá origem há uma miniatura de Jorge feita de vidro. Elas saem correndo e se escondem por debaixo dos móveis; da parede que antes apenas escorria um pequeno filete de sangue agora jorram grandes goles escarlate que começam a pintar o quarto todo de vermelho. Estatelado, Jorge tenta se esconder debaixo da cama, mas lá encontra uma réplica sua que sai correndo. Assustado, ele se dá conta que todo seu corpo era feito de vidro e refletia o quarto inteiro. Vendo isso ele se levanta e vai até o espelho. ELE percebe que reflete o seu reflexo. A partir daí o tempo passa a andar num ritmo tão veloz, que as coisas acontecem de forma estática. Vê o sangue secando e virando marca de idade na parede, os móveis sendo trocados de lugar, as roupas sujas se acumulando, fungos brotando da madeira podre, afiladas aranhas a tecer frenéticos espirais que se desfazem tão facilmente, e, por fim, tudo acontece tão rápido, que Jorge vê o espelho e seu corpo escorrerem sobre si e aos poucos virarem uma poça de vidro no chão. É nesse momento que suas miniaturas reaparecem e pegam aquele líquido viscoso, formado por Jorge e o Espelho, e começam a moldar uma criatura. O resultado é um corpo de Mulher, e Jorge não tinha dúvida, era Helena. Porém, o vidro que fora usado para criar esse Jorge (Ele-na) Havia absorvido o vermelho da parede.
Tal mulher tinha o corpo escarlate e brilhava como um rubi em brasa. Jorge não sabia o que sentir ao ver tal coisa - ele gozava; morria; sentia o poder de tê-la ao alcance das mãos, mas tinha medo do que era; gritava e se acalmava; chorava por se sentir tão bem e se molestava para se preservar, se expandia num corpo que não te cabia. Foi quando as paredes desapareceram, não havia teto, parede, nem chão, e tudo que se via era vermelho. Por isso, Jorge não mais se via, nem via mais nada. Tudo que havia era o Vermelho.
Passado algum tempo, Jorge vê brilhar um ponto negro muito longe no fundo vermelho. Gritos aos pares partem do ponto. Eram sons agudos e dissonantes, ensurdecedores como o de mulher sendo estuprada. O barulho era inquietante. Os sons misturados ao vermelho impregnado em que Jorge boiava, lhe forçavam à vigília. Ele chorava baixo, miava em uníssono com um miado feminino. E num ímpeto de unidade, gritou:
Chega !
O grito de Jorge fez vibrar toda a cor que o envolvia deixando todo o espaço em brasa, insuportavelmente rubro. Sua voz ecoava por todos os cantos, oscilando entre extremos de tonalidades graves e agudas. A cada oscilação, o emaranhado de sons aglutinava mais um eco vindo sabe-se lá de onde, tornando tudo insustentável.
O ponto negro havia se misturado ao som, se transformando num aglomerado viscoso de agonia e dor e, acompanhando o ritmo das oscilações sonoras, se aproximou vertiginosamente. O pequeno ponto mostrou-se serem duas cabeças descomunais. Eram rostos talhados em bronze incandescente. Tinham aqueles olhares perdidos de estátua de jardim e lábios grandes e bem desenhados. No lugar de cabelos tinham milhares de córneas com olhos apontando para todas as direções. Mas, o mais incrível é que as duas bocas mexiam sem que nenhum som fosse emitido. A cabeça da direita tinha uma expressão de fúria direcionada para o horizonte de onde Jorge se aproximara, franzia o cenho e rangia os dentes. A boca articulava movimentos marcados. Os olhos estavam injetados como setas. A da esquerda se compadecia e se lamentava, chorava como índia em enterro de gente importante. Soluços traziam lágrimas densas, com gosto de boca.
Por um breve momento, um pensamento tintilou na cabeça de Jorge e as cabeças ouviram. Elas são o meu único Deus possível... o silêncio que me dá a voz e brinca com a minha existência. Mas, espera aí... Aqui metáforas é o que elas são, como esse corpo reflexo que carrego forçosamente.
E as cabeças engoliram seco.
No exato momento em que todos os movimentos desapareceram, e as cabeças assumiram o seu estado “natural” de estátuas de bronze, uma frase se fez audível num som metálico e polifônico.
“Boa noite. É chegada a hora do fim desse dia. Durma pequena criatura, pois teu tempo é o meu tempo. Você já existiu demais por hoje. E saiba - No fim, tudo é de novo.”
Ouvindo isso o homem se recompôs em cama, quarto, corpo, copo. Tal suspiro de consciência teve a duração de exatos três segundos. Num sopro, Jorge acordado num sobressalto tem ímpetos de sair da cama, do quarto, do corpo, sair. De par em par seus braços depenados procuram apoio no vazio do ar, o homem não sustenta. Seu corpo desceu ao chão. Percebendo estar no quarto ele relaxa e suspira aliviado. Petrifica-se novamente em sono, cama, quarto, torpor, copo, sonho.
Getulio P. e Gabriel Alvarenga