quarta-feira, 9 de março de 2011

Uma das muitas Histórias de Jorge

Esse é o mesmo Jorge que há tempo se esconde no canto escorregadio da cama. Passou mais tempo que devia sem saber onde estava, ao acordar. Sente a face impregnada com o suor que jorra do rasgão do descobrir de repente quem se aprendeu a ser. E ele tenta esquecer. Tenta não saber, mas sabe que essas serão as únicas oportunidades de sentir tal coisa, um sentimento que só se torna nobre, pois nos leva ao extremo da demência. Mas quem pode dizer que sabe quem É?

Ele um dia terá coragem... Coragem de ser covarde a ponto de afirmar “Eu não sei quem me diz”. Coragem de ter medo de ser essa mesma coisa. E essa manhã estava particularmente escura. Ao virar o rosto pesado, vê uma migalha de luz refletir o quarto de forma oval na face do copo. Por um momento, pensou se não poderia ser ele o reflexo. Ou o copo junto com o quarto e todo o resto não seriam um puro reflexo do reflexo. Nunca havia se atentado ao fato de que podia pensar tais coisas, Sempre era ela quem sussurrava em seu ouvido “você é isso... você é aquilo...”, mas como ela pode dizer isso. De onde vem esse É?

E ele lá permanece como bicho acuado no canto da cama, se escondendo do reflexo na face do copo, bebendo como cão com sede todo o desespero de se deparar com o rosto que se esconde atrás do espelho. E ri... Ri com o amarelo anêmico da estadia encarcerada em um corpo que ele começa a achar não ser seu, lhe manchando os dentes. Aquela manhã começava como um suspiro de soco na barriga. Ao invés de sentir a usual apatia de se lembrar quem é, minutos após acordar, sentia um frio na barriga, frio de garoto virgem. Dessa vez ele lembrava, mas não tinha certeza se tal recordação tinha fundamento. E se ele acordasse e de repente se lembrasse de ser Helena?

Sempre gostei daqueles minutos logo após se acordar quando não sabemos ao certo quem somos... É certo que isso nem sempre acontecesse, ou talvez nem sempre saibamos que esquecemos de ser, mas, quando isso ocorre, gozamos o prazer de não-estarmos. Ser Deus deve ser assim, meio covarde, meio esperto, meio demente, mas, acima de tudo, ausente. Porém, hoje o não-dia não foi tão divino, o estômago dava nós em circunvoluções cheias saliva guardada no canto do órgão. A saliva quase seca dos dias em permanência recíproca com o mundo. POR QUE é tudo tão assim? E o copo do lado da cama me enojando, aquele face escondida na face do copo poderia não me-ser. Mas eu viro pro lado, viro sim, porém o reflexo não depende de mim... Se não for eu vai ser o quarto, o quarto que eu sou. ELE não pode... Eu não posso. Até que ponto chegou tal passividade agônica e corrosiva. Afundou-me no meu próprio flutuar, me acorrentou na infinidade de possibilidades. Eu nem mais sei se devo saber.

Eu preciso levantar... Eu preciso ir até a janela, preciso vomitar em cima do mundo. “Toma para vocês um filho seu que foge a luta. Toma o resto dos olhares. Toma para vocês o corpo que se arremata em leilão próprio. Toma o que consome os restos de luz filtrados pela face translúcida de um copo sujo”. Mas o que me espera do lado de lá da transparência que me encarcera me cegando? Talvez Jorge, o próprio. Substantivo que adjetiva um corpo se convencendo a todo tempo que estar de pé é o melhor a se fazer. Tenho medo de não precisar temer o curso não-linear e vibrátil da vida. SOU UM ARCABOUÇO. Preciso sê-lo para ser um que vive, ser um que se vira e não vê a modificação tão simples e assustadora da realidade que passa pelo funil de um copo. MAS EU NÂO caibo em mim, não posso mais me suportar, não devo querer isso. Por hoje pelo menos, para que não precise mais poder.

Jorge se levanta e de súbito arremessa o copo contra a parede. No momento exato em que o copo se transforma em pedaços, tudo Para. Os ponteiros do relógio na parede ficam estáticos; os barulhos vindos da rua cessam; o vento que entrava pelo vitral do quarto e lhe balançava a franja sobre a testa para, deixando pequenos fios de cabelos numa marca que lembra um flutuar; os cacos ficam suspensos e em cada pedaço há um pedaço da face de Jorge. ELE não respira. Nesse momento, a parede sangra e parece chorar como um corpo que nasce.

E tão rápido como fora o arremesso, as coisas retomam o seu movimento. Porém, ao cair no chão cada caco dá origem há uma miniatura de Jorge feita de vidro. Elas saem correndo e se escondem por debaixo dos móveis; da parede que antes apenas escorria um pequeno filete de sangue agora jorram grandes goles escarlate que começam a pintar o quarto todo de vermelho. Estatelado, Jorge tenta se esconder debaixo da cama, mas lá encontra uma réplica sua que sai correndo. Assustado, ele se dá conta que todo seu corpo era feito de vidro e refletia o quarto inteiro. Vendo isso ele se levanta e vai até o espelho. ELE percebe que reflete o seu reflexo. A partir daí o tempo passa a andar num ritmo tão veloz, que as coisas acontecem de forma estática. Vê o sangue secando e virando marca de idade na parede, os móveis sendo trocados de lugar, as roupas sujas se acumulando, fungos brotando da madeira podre, afiladas aranhas a tecer frenéticos espirais que se desfazem tão facilmente, e, por fim, tudo acontece tão rápido, que Jorge vê o espelho e seu corpo escorrerem sobre si e aos poucos virarem uma poça de vidro no chão. É nesse momento que suas miniaturas reaparecem e pegam aquele líquido viscoso, formado por Jorge e o Espelho, e começam a moldar uma criatura. O resultado é um corpo de Mulher, e Jorge não tinha dúvida, era Helena. Porém, o vidro que fora usado para criar esse Jorge (Ele-na) Havia absorvido o vermelho da parede.

Tal mulher tinha o corpo escarlate e brilhava como um rubi em brasa. Jorge não sabia o que sentir ao ver tal coisa - ele gozava; morria; sentia o poder de tê-la ao alcance das mãos, mas tinha medo do que era; gritava e se acalmava; chorava por se sentir tão bem e se molestava para se preservar, se expandia num corpo que não te cabia. Foi quando as paredes desapareceram, não havia teto, parede, nem chão, e tudo que se via era vermelho. Por isso, Jorge não mais se via, nem via mais nada. Tudo que havia era o Vermelho.

Passado algum tempo, Jorge vê brilhar um ponto negro muito longe no fundo vermelho. Gritos aos pares partem do ponto. Eram sons agudos e dissonantes, ensurdecedores como o de mulher sendo estuprada. O barulho era inquietante. Os sons misturados ao vermelho impregnado em que Jorge boiava, lhe forçavam à vigília. Ele chorava baixo, miava em uníssono com um miado feminino. E num ímpeto de unidade, gritou:

Chega !

O grito de Jorge fez vibrar toda a cor que o envolvia deixando todo o espaço em brasa, insuportavelmente rubro. Sua voz ecoava por todos os cantos, oscilando entre extremos de tonalidades graves e agudas. A cada oscilação, o emaranhado de sons aglutinava mais um eco vindo sabe-se lá de onde, tornando tudo insustentável.

O ponto negro havia se misturado ao som, se transformando num aglomerado viscoso de agonia e dor e, acompanhando o ritmo das oscilações sonoras, se aproximou vertiginosamente. O pequeno ponto mostrou-se serem duas cabeças descomunais. Eram rostos talhados em bronze incandescente. Tinham aqueles olhares perdidos de estátua de jardim e lábios grandes e bem desenhados. No lugar de cabelos tinham milhares de córneas com olhos apontando para todas as direções. Mas, o mais incrível é que as duas bocas mexiam sem que nenhum som fosse emitido. A cabeça da direita tinha uma expressão de fúria direcionada para o horizonte de onde Jorge se aproximara, franzia o cenho e rangia os dentes. A boca articulava movimentos marcados. Os olhos estavam injetados como setas. A da esquerda se compadecia e se lamentava, chorava como índia em enterro de gente importante. Soluços traziam lágrimas densas, com gosto de boca.

Por um breve momento, um pensamento tintilou na cabeça de Jorge e as cabeças ouviram. Elas são o meu único Deus possível... o silêncio que me dá a voz e brinca com a minha existência. Mas, espera aí... Aqui metáforas é o que elas são, como esse corpo reflexo que carrego forçosamente.

E as cabeças engoliram seco.

No exato momento em que todos os movimentos desapareceram, e as cabeças assumiram o seu estado “natural” de estátuas de bronze, uma frase se fez audível num som metálico e polifônico.

“Boa noite. É chegada a hora do fim desse dia. Durma pequena criatura, pois teu tempo é o meu tempo. Você já existiu demais por hoje. E saiba - No fim, tudo é de novo.”

Ouvindo isso o homem se recompôs em cama, quarto, corpo, copo. Tal suspiro de consciência teve a duração de exatos três segundos. Num sopro, Jorge acordado num sobressalto tem ímpetos de sair da cama, do quarto, do corpo, sair. De par em par seus braços depenados procuram apoio no vazio do ar, o homem não sustenta. Seu corpo desceu ao chão. Percebendo estar no quarto ele relaxa e suspira aliviado. Petrifica-se novamente em sono, cama, quarto, torpor, copo, sonho.


Getulio P. e Gabriel Alvarenga

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

NOITE DE BRAHMA!


O que é essa experiência tosca de "eu" senão o emaranhado de frases pela metade... músicas assobiadas despretensiosamente... Sermões a esmo em bocas a esmo? Somos a sensação sempre incompleta de unidade. Mas como unidade se incompleto? Há pequenos buracos de fechadura formando isso que chamamos eu de onde jorram fluxos descontínuos de toda sorte de comportamento. Afinal... somos imprevisíveis.


Mas o que garante o mesmo cruzar de pernas durante 50 anos? As mesmas piscadelas. As formas de se ajeitar o cabelo. Os mesmo ídolos. Os mesmos maneirismos?

Somos a cópia do que achamos ser nós mesmos e – pasmem – a cópia sempre sai errada. Nesse erro nos constituímos humanos, animais com a estranha mania de tentar quantificar o acaso, e vendê-lo.

Vender e comprar – resumo bom do novo homem sem ídolos nem verdades predefinidas. Não queríamos a liberdade? Aí está... servida em grandes banquetes midiáticos nas escolas, igrejas, supermercados, outdoors, tudo bem televisionado e digitalizado. Ao alcance de ávidos dedos e olhos que, não satisfeitos com a condição de corpo, estenderam seus limites ao código transmitido por impulsos magnéticos. Mas para quê?

Vender e comprar - Nosso tempo (mercadoria preciosa negociada entre grandes conglomerados comerciais) não pertence mais a um Estado, a um exército ou a um burguês gordo dono de alguma fábrica têxtil... pertence a ninguém menos que o MERCADO. Entidade sem cor, nome ou telefone que você não vai conseguir acertar com um molotov.

É com certo pesar que observo as bandeiras vermelhas hasteadas e os gritos “apaixonados” por um Novo mundo... uma Nova Escola...uma Nova Economia... etc. O novo não é mais nossa questão. Nosso maior desafio e contaminar redes alheias com nossas existências tortas. Afinal nunca foi o homem quem criou o tal Novo... o acaso cria o novo.

Vender e comprar – fórmula simples e irredutível. Faremos nosso grito ser vendido e consumido como mais uma marca de jeans. Molecularidade de ação. Quer algo mais molecular para o homem contemporâneo do que vender e comprar? Contaminaremos esse jogo a partir do número de visitas em nossos vídeos postados em podcasts... ou nos nossos blogs, Flogs, Fóruns, Coletivos virtuais. Se o império e a tal dominação usam de artifícios desterritorializados para acessar o que temos de mais recôndito nas nossas medíocres vidas, porque não resistir com as mesmas armas?

E a Tv? Esse totem da subjetividade contemporânea massificada. Berço e palco da sociedade espetacularizada. Não sei! Mas sei que somos as carinhas doces e pervertidas das apresentadoras louras de programas infantis. Amamos como nos filmes bobos da sessão da tarde. Nossa moral não vem mais dos vultos ou das doutrinas, mas dos cabelos bem penteados e os sorrisos de creme dental. Nossa subjetivação é midiática.

Como subverter? Causando. Criando o fato com alto poder midiático, mas que em si carrega a subversão a esse modelo.

Mas cuidado... não acreditem que basta poder desbloquear o celular para ser um homem livre. Afinal... você ainda tem um celular.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Por esses uns lugares



-- Esperem baixar e leiam ouvindo --
-- !clicar na telinha... espera um pouco... depois clica no pause...--

O que se passa no momento ônibus lotado fotografado pelas retinas de alguém que espera no ponto? Como o acaso conforma e coloca todos aqueles pensamentos e histórias em entre-curso?

Ando dormindo em ônibus. Não carrego estampa, bandeira, estandarte, ou palavras tatuadas em minha couraça já tatuada com as cicatrizes do caminho. Sou a estampa do meu delírio. Mas, incrivelmente, me sinto em casa e ao lado de estranhos, pelo simples fato do acaso me colocar em um ônibus com uma porção de pessoas sem motivo algum para estarem juntas.

Sinto-me entre amigos entre estranhos. Meu ninho é a sorte de determinações aleatórias em que me sinto repousando sobre a sobriedade do anonimato.

Quantas paixões um ônibus carrega? 40 e tantas sentadas e 30 e poucas em pé?! Quantos partidas... chegadas... inícios... rompimentos? eu sozinho carrego o peso das horas demasiadas humanas em curso com cursos alheios. Sou alheio e isso me transforma ciente.

Mas está chegando meu ponto. Como me despedir dessas pessoas que velaram tão afetuosamente meu sono, e me deram a tranqüilidade de estar entre companheiros de verdade? O fato de não termos motivos de ódio ou de amor a priori, nos transforma imediatamente em companheiros. Qual a relação que criamos com quem coexiste conosco onde dormimos?

Sinto da falta de paixões recentes, amores antigos e companheiros mortos. Sinto desejo de novas peles e de olhares que nunca vi. Peço ao Universo a verdade e a luz, e um tanto de passionalidade. Sou o suspiro de uma geração sem amores reais, mas carrego pregado em minhas costas a marca da doçura do afeto descompromissado.

No cansaço de procurar colos personificados, encontrei o colo onde só há o chão e vou sorvendo o líquido doce da madrugada. Provo a doçura da perversidade alheia e sigo a me refestelar com o fracasso inerente a existir.

Aceitei a insígnia de traço torto nas linhas já escritas tortas. Mas também... Não me contento em amar só uma Maria, em respeitar inevitavelmente um José qualquer... e etc.
Quero o amor pulso cortante que não respeita designações retilíneas.

AH universo! Te dou em troca meu descontrole.

Ademais é hora de descer sem me despedir, afinal cheguei sem me apresentar.

Real diluído. (ou chega de real)

O corpúsculo dos ídolos



Qual rosto iremos esculpir no busto de nossos ídolos?

Talvez um deus morto pateticamente crucificado... ou qualquer sossego exasperado de artistas falidos.

Vultos de uma humanidade carente de humanismo?
Empresários, padres, deuses ou demônios?

Há algo errado nessa fotografia do pós-futuro
Há qualquer desencanto enobrecido
Há uma lágrima seca há tempos no canto de nossos olhos
Há várias notas erradas no canto de nossas verdades.


Mas... Qual rosto iremos esculpir mesmo?

Talvez o mais do mesmo...
Particularmente
Prefiro o mesmo e um pouco mais.

Já sei... talvez uma grande Vagina
Em forma de tempo.

No nosso caso
Ela seria seca
Frígida
Gelada como nosso ímpeto petulante de estar fora da história.

Há algo errado na minha fotografia da fotografia do Ultra-passado
Talvez sejamos nós o eterno que já durou
O samba sem refrão
A possibilidade de qualquer coisa
Que acaba sendo coisa alguma.

Já sei!

Vou esculpir a discórdia em tons niilistas de quem não tem um porto
E mantém a deriva como condição única de existência
A discórdia de cara gorda
Bem alimentada
Barba bem aparada
Expressão de uma serenidade conflituosa
E a certeza de que já vai tarde...